Qual o papel da Psicanalise hoje

QUAL O PAPEL DA PSICANÁLISE PARA OS DIAS DE HOJE

QUAL O PAPEL DA PSICANÁLISE PARA OS DIAS DE HOJE?

Claudemir Zanghelini

Uma frase do escritor francês Victor Hugo, retirada do romance "Os Miseráveis", nos dá aqui o que pensar. Ele diz: "Ce n’est rien de mourir, C’est affreux de ne pas vivre" ("Morrer não é nada. Horrível é não viver").

Os estudos sobre a natureza humana envolvem os conflitos e perturbações psicológicas. A análise, ou técnica analítica, como primeiramente definiu Freud, foi a precursora de diversas formas de experimentar, estudar e buscar uma cura para essas dores. O conceito de Psicanálise foi construído de forma evolutiva, com descobertas pré e pós-freudianas. A transferência e a contratransferência foram descobertas, conceituadas e passaram a ser técnicas importantes usadas na análise de pacientes e na busca e investigação das causas de sofrimentos humanos não advindos de patologias biológicas.

O foco nessas técnicas, em específico, é motivado pelas inúmeras possibilidades de uso. Da mesma forma, é necessário conhecer tanto a sua conceituação como os limites e a possibilidade de que, ao serem utilizadas, possam ser de extremo auxílio ao analista ou, ao contrário, trazer resultados negativos e maléficos, envolvendo, tanto em uma situação como em outra, não só o analista, mas também o paciente. Eis a importância de dominar tanto quanto possível os conceitos e as mais diversas propostas de uso.

Quando tomamos conhecimento dos primeiros casos comentados por Freud, como os de Anna O., Elisabeth Von e outros, nos deparamos com um estado de miséria material em que a morte representa um mero acaso e a vida um grande risco. O cotidiano de todos os dias que insiste em nos perguntar se é essa vida mesmo que queremos viver deve nos ensinar que horrível mesmo é não viver. Nesse espaço onde a vida cobra seu valor diante de qualquer ser humano, a psicanálise ainda hoje se anuncia.

O sofrimento de cada um está enraizado na condição impossível de uma resposta definitiva ao que fazemos de nós mesmos e mesmo àquilo em que devemos nos tornar. As receitas que ensinam a viver são várias, e aí mora o perigo. Ao ouvir diversos conteúdos em podcasts, YouTube, TikTok, etc., qualquer um se acha a partir de então capacitado a elaborar fórmulas mágicas endereçadas a si, não sem certo divertimento: "quer dizer então que sou bipolar, histérico, obsessivo, melancólico e algumas vezes perverso?". Essa é uma aposta subentendida em toda empreitada psicanalítica: não há remédio para os desafios que a vida nos impõe senão viver.

Vivemos em um tempo de respostas. Há respostas ilusórias para tudo, que vão desde religiões e shopping centers até os tão procurados medicamentos antissofrimento ofertados pela psiquiatria moderna. O contraponto proposto pela psicanálise é buscar as boas perguntas. A psicanálise, enquanto única ciência que busca falar daquilo que não se pode dizer, sustenta-se no paradoxo de oferecer cada vez mais perguntas às perguntas, posto que tem como objeto o inconsciente, que é, em essência, não todo, ou seja, não aceita respostas. É o evasivo (Lacan, 2008) que constrói perguntas que nunca se fecham.

Toda a tentativa que a ciência tradicional sempre fez de responder aos mistérios do homem, e que atingiu talvez o seu auge na segunda metade do século passado, frustrou-se. Hoje vemos um ser humano perplexo frente à vastidão de perguntas que chegam de todas as direções. Os poucos referenciais oferecidos pela cultura, pela ciência e pelas religiões esfacelam-se diante de nossos olhos. Mais e mais perguntas se fazem necessárias, e frente a elas e à perda de referenciais, o homem do século XXI padece de certa desistência, perdendo o interesse por sua subjetividade e lançando-se, perplexo, num universo vazio de significações (Magdaleno, 2008), onde o que resta é seu corpo e seu poder de consumir.

Os pacientes contemporâneos criam conosco campos analíticos diversos dos que costumavam ocorrer há alguns anos e nos impõem a necessidade de desenvolver novas maneiras para alcançá-los, sem abandonarmos os princípios técnicos que fundam nossa disciplina, mas sem nos engessarmos ou permanecermos imitativos. Freud nunca temeu rever suas proposições. Diz ele, na conferência, que em relação à técnica "na verdade, quase tudo ainda aguarda a posição final" (1910/1970, p. 130). E mais: "Se deve modificar a técnica, em certos setores, de acordo com a natureza da doença e das tendências pulsionais predominantes no paciente" (1910/1970, p. 130). E anuncia que outras modificações, além das que já havia proposto para o tratamento da histeria de conversão e da neurose de angústia, seriam requeridas, mencionando especificamente a neurose obsessiva.

Nos últimos anos, temos reconhecido cada vez mais a presença da pessoa do analista no encontro clínico: "pela forma como se coloca no contato com seu analisando, o analista colabora na construção do campo com todo o peso de sua vida mental" (Ferro, 1998). Essa percepção promove mudanças na maneira de trabalharmos, pois estamos na relação não apenas interpretando conflitos internos do paciente, mas conversando sobre a experiência emocional vivida pela dupla. Muito se tem falado em inovações técnicas, e chegou a hora de conhecermos isso melhor: propostas que visam examinar com mais profundidade a teoria da clínica estão postas no momento. Penso que o desenvolvimento da psicanálise, as dificuldades da vida atual e o alto grau de sofrimento humano têm, na verdade, nos ajudado a aperfeiçoar a prática clínica, refinando escuta, intervenções e interpretações. Estamos profundamente interessados nos nossos pacientes, no desenvolvimento de nossa função analítica, atentos à subjetividade, formando duplas únicas com cada paciente e alcançando, quando possível, níveis cada vez mais profundos.

Então, qual a subjetividade para o século XXI? Se no início do século XX, Freud chocou o mundo científico ao descrever o homem sendo movido por suas paixões inconscientes, conceituando o sujeito desejante e enfatizando a natureza traumática de sua sexualidade e de sua identidade, é fundamental que o psicanalista de hoje possa repensar, a partir do contexto atual, a subjetividade emergente neste novo século. Como fica a teoria dos sonhos clássica quando a mais natural das fronteiras, aquela entre o dia e a noite, está apagada pelo uso sistemático da internet? Como fica a problemática da identidade e do sujeito quando as fronteiras geográficas se diluem no espaço cibernético? O achatamento do imaginário decorrente do excessivo bombardeio a que toda pessoa é submetida configura o trauma do novo sujeito: não mais sexual, o trauma fundador da nova subjetividade é informacional.

Se há 100 anos o foco da psicanálise era colocado na sedução traumática constitutiva do sujeito, hoje é necessário que ele se desloque para o impacto traumático provocado pelas imagens das mídias, na constituição de todo sujeito. Portanto, não é de se estranhar que os correspondentes clínicos atuais da neurose de antigamente sejam a anorexia, a bulimia, a depressão difusa e a indefinição de metas de vida. Todos eles denunciando que os mecanismos de troca entre um interior e um exterior estão afetados ou impossibilitados de existir.

Certos psicanalistas têm alguma experiência em trabalhar com a provisoriedade dos conceitos, com o aqui e o agora, em que nem o aqui é necessariamente o lugar onde estamos nem o agora é o tempo marcado pelo calendário. A verdade é que, especialmente nas últimas décadas, impressionantes mudanças no modo de viver e as dificuldades atuais se fizeram sentir nas clínicas: muitos psicanalistas trabalham hoje menos do que no passado, atendendo pacientes numa frequência de sessões também menor do que antes. Mesmo assim, com o desenvolvimento da prática, penso que temos conseguido compensar a falta das condições ideais para uma análise plena com o crescente refinamento da função analítica, aproveitando as possibilidades do encontro clínico com sensibilidade e precisão.

Muitas pessoas buscam a psicanálise, empurradas na maior parte das vezes por sofrimentos emocionais quase insuportáveis – com seus transbordamentos para o corpo. Alguns pacientes procuram tratamento depois de terem se submetido a outros tipos de terapias, por terem obtido informações sobre a consistência e profundidade do tratamento analítico ou por considerarem insuficiente apenas o tratamento medicamentoso. Ficam conosco aqueles que se identificam com o nosso modo de conversar e de pensar, e que passam a reconhecer e aceitar a realidade do sofrimento interior e a buscar o desenvolvimento emocional. Incluem essa experiência em suas vidas e vai se construindo a confiança no analista, no método e na prática psicanalítica, pois aos poucos vão se sentindo mais confortáveis dentro de si mesmos e começando a pensar por si próprios. E, ao compartilharem essa experiência com outras pessoas, acontece, num grau bem menor do que o esperado por Freud em 1910, uma espécie de efeito cascata benéfico tanto para outros indivíduos quanto para a psicanálise.

Concordo com Marília Eisenstein, em artigo publicado no último número da RBP (2009), quando ela diz que agora a ação terapêutica deve ser compreendida como um "movimento para o crescimento do campo psíquico", que permite muito mais do que o alívio de sintomas. Isso fala de uma ampliação dos objetivos do tratamento analítico, mas também se refere à "profunda revisão do objeto" da psicanálise. Ela cita alguns fios condutores teóricos que todos conhecemos e que precisam continuar nos guiando: o reconhecimento das forças inconscientes, da dualidade das pulsões de vida e de morte e do conflito psíquico entre desejo e defesa, além da confiança na eficácia terapêutica da psicanálise. Acrescento aqui a experiência emocional que se dá no campo analítico e encontra no setting o espaço apropriado para ser vivida, interpretada e elaborada, e a assimetria razoável, organizadora. Considero fundamental mantermos o foco na direção desses fios condutores, no desconhecido e no não nomeado, que, ao serem pouco a pouco revelados, proporcionam experiências emocionais inéditas, que integram todos os tempos e têm imenso valor para a dupla analítica e para cada um de seus membros.

Da inter-relação dinâmica desses conceitos, frutos da prática clínica, que tentamos sem cessar aperfeiçoar e articular teoricamente, advém a consistência de nossa disciplina, o que nos diferencia de tudo o mais e o que de mais precioso temos a oferecer, onde quer que o psicanalista atue. Creio que seremos cada vez mais necessários, dentro e fora dos consultórios. É o desafio de cada um de nós que se propõe a dar continuidade à criação freudiana: estarmos atentos às mudanças à nossa volta, no sentido de expandir nosso método e nossa técnica, visando poder abarcar este novo sujeito da cultura. Toda a tentativa de adaptar o sujeito a parâmetros obsoletos conduz a psicanálise a um isolamento, o que vai frontalmente contra a meta freudiana de permitir que o sujeito possa se tornar apto para a existência (Freud, 1905/1972b), ou seja, inserido ativa e prazerosamente em seu momento cultural. Se entendermos este sujeito como o psicanalista ou a própria psicanálise, facilmente chegamos à conclusão de que nós, psicanalistas, e a própria psicanálise, só temos chance de existir a partir do momento em que abandonarmos nossas fobias neuróticas e nos apresentarmos para o mundo com todo nosso potencial heurístico e revolucionário, como sempre fomos desde o princípio.

REFERÊNCIAS

EISENSTEIN, M. (2009). Sobre a ação terapêutica da psicanálise no século XXI. Revista Brasileira de Psicanálise, 43 (3) p. 171.

FERRO, A. (1998). Na sala de análise. Rio de Janeiro: Imago.

FREUD, S. (1970). As perspectivas futuras da terapêutica psicanalítica. (Vol. 11, p. 125). In S. FREUD, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1910)

FREUD, S. (1972b). Sobre a psicoterapia. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. (J. Salomão, trad., Vol. 7, pp. 263-78). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1905[1904]

MAGDALENO JR., R. (2008). A dialética de Eros e o mal-estar na cultura hoje. Ide, 31 (46), 46-51. Universidade Estadual de Campinas

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